A mágica da distribuição

17/02/2020
Fonte: Valor Econômico
Por David Zylbersztajn e Fernanda Delgado
Usinas não têm estrutura logística para chegar aos mais de 40 mil postos espalhados pelo país
De tempos em tempos, fórmulas mágicas aparecem para resolver questões complexas. Surgem normalmente como resultado de um momento de crise, são alimentadas em um círculo pequeno, ganham repercussão por prometer uma solução rápida e, de repente, tornam-se verdade absoluta. Ou quase.
É mais ou menos este o roteiro que envolve a discussão pela venda direta de etanol da usina produtora ao posto. Uma aventura protagonizada pelos usineiros do Nordeste brasileiro, que, desde o fim da greve dos caminhoneiros em 2018, tratam a regulamentação da ANP nº 43/2009 como um dos grandes vilões do preço dos combustíveis, por prever a  necessidade logística de uma distribuidora executar o processo necessário para a entrega do etanol.
Por esse ponto de vista, a retirada das distribuidoras do processo que leva o biocombustível até o posto seria suficiente para provocar uma queda automática de preço do etanol. Para isso, se abandonaria uma estrutura de abastecimento segura e consistente de distribuição, construída ao longo de anos de investimentos que garantem a entrega em todo território brasileiro. Um percurso que passou a ser chamado de “passeio do álcool” por quem mira as distribuidoras como os vilões dessa história.
A questão é que não existe o tal “passeio”. O que existe é um modelo que divide as tarefas entre produção, distribuição e revenda e que permite um abastecimento seguro, oferecendo ao consumidor final um produto entregue a custos competitivos. O modelo vigente consolidou uma estrutura que permite negociações de grandes volumes, otimização de fretes,arrecadação de impostos que inibem a sonegação, a inadimplência e a adulteração dos produtos e, principalmente, a presença do etanol hidratado em qualquer lugar do Brasil, graças a terminais de armazenamento em todas as regiões.
Tal capilaridade de operações logísticas é fundamental para unir os eixos de produção de combustíveis. Vale relembrar que grande parte das refinarias brasileiras está localizada próxima a terminais portuários, que recebem combustíveis fósseis importados. Já as usinas sucroalcooleiras dividem-se em dois blocos principais: 7% delas estão no Nordeste (majoritariamente Alagoas, Pernambuco e Paraíba), enquanto os outros 93% se espalham pelo chamado Centro-Sul (Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás).
Esta distribuição só reforça o fato de que estas usinas não têm estrutura logística para chegar aos mais de 40 mil postos espalhados pelo Brasil, algo que só se viabiliza pelos investimentos das distribuidoras. E, para abandonar este modelo, os produtores teriam que substituir a eficácia operacional e de baixo custo dos sistemas de dutos, ferroviase bitrens que viabilizam a entrega. O custo de toda adaptação, incluindo impactos no frete e questões operacionais e administrativas poderia chegar a algo em torno de R$ 870 milhões, segundo estudo de 2018 da consultora Leggio.
Além disso, há uma outra particularidade que envolve o etanol no Brasil: o biocombustível derivado da cana-de-açúcar, dá ao país um capital extremamente positivo de incentivo a uma matriz energética renovável, gera empregos, e ainda sequestra carbono da atmosfera. Para além disso, é a adição de 27,5% de etanol anidro que faz da gasolina brasileira menos agressiva ao meio-ambiente. E essa mistura só pode ser realizada nos tanques de armazenamento das distribuidoras.
Adicionalmente, as alterações na distribuição do etanol hidratado combustível podem atingir outros mercados com potenciais efeitos de alterações no equilíbrio entre as espécies de etanol e entre o etanol hidratado combustível e a gasolina.
Ao analisar a cadeia de distribuição do etanol em Brasília, por exemplo, se concluiria que, sem a presença do distribuidor, seria necessária uma operação de deslocamento 513 km mais longa para efetuar a adição do biocombustível, já que o etanol anidro teria de ser levado de uma usina no Centro-Oeste até o porto de Santos (563 km de distância) para a realização da mistura, além de percorrer outros 519 km para chegar à capital federal. No modelo atual, o etanol anidro sai da usina de Goiás, por exemplo) e percorre 50 km para chegar ao terminal, que também recebe a gasolina trazida do mesmo porto de Santos para a produção da mistura.
Exemplos como este mostram que a discussão da venda direta oculta uma questão absolutamente relevante de carência de investimentos em eficiência logística e infraestrutura no país, assim como de investimentos em modais mais eficientes e que tirem o peso das rodovias deste processo. Atualmente, o Brasil mantém uma cadeia de 8 mil km de dutos e 31 mil km de ferrovias destinadas ao transporte de combustíveis. Para efeito de comparação: os EUA, com território não muito maior que o brasileiro, aproveita uma malha de 335 mil km de dutos e 294 mil km de trilhos (apenas para combustíveis).
Neste momento a discussão que está posta parece mascarar uma mais importante: a necessidade de se de buscar mais desenvolvimento em infraestrutura, mais capacidade de economia de escala e um maior impulso às energias renováveis, como o RenovaBio, programa governamental para descarbonizar a matriz energética brasileira e que sofreria forte abalo com a eventual mudança de estrutura desta cadeia.
Desmontar toda uma indústria em nome de interesses da menor parte da cadeia produtiva do etanol pode fazer o Brasil voltar a um tempo recente, em que uma centena de usinas encerraram suas operações por uma decisão governamental - o congelamento do preço da gasolina, entre 2011 e 2014. Um período de incerteza e intervenção governamental, que afastou os investidores, e ao qual o país não pode se dar ao luxo de resgatar.
E por fim, mas não menos relevante, segundo estudo da FGV Energia (2019), a ANP menciona que não há impedimentos regulatórios para a liberação da venda direta de etanol, contudo alega ser necessário equacionar a questão tributária relacionada à cobrança de PIS/Cofins e ICMS. As incidências tributárias de ICMS e de PIS/Cofins não foram elaboradas com a venda direta em mente. Para evitar perdas de arrecadação e os indesejados efeitos da sonegação e da concorrência desleal, seriam necessárias alterações nas legislações federal e estaduais. Na legislação federal, trata-se de transferir o devido pelas distribuidoras às usinas, tendo-se em mente os efeitos na competitividade entre o etanol hidratado, anidro e seus efeitos no preço da gasolina. E na legislação estadual, os efeitos da venda direta podem aumentar a parcela a ser recolhida por um único elo da cadeia de comercialização, o que pode funcionar como incentivo ao contrabando e ao descaminho.
David Zylbersztajn é professor da PUC-RJ e foi o primeiro diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo
Fernanda Delgado é professora da FGV Energia

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